Medo de ser feliz

setembro 26, 2007

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Em cartaz: As Leis de Família (Argentina, 2006)

Quais os códigos subterrâneos que regem a ordem secreta das famílias? As relações entre pais e filhos, marido e mulher, irmãos quase sempre têm leis que não precisam ser escritas ou declaradas mas, em algum momento, são questionadas e até desafiadas. O que se vê no novo filme do argentino Daniel Burman, As Leis de Família (Derecho de Familia, 2006), também responsável pelo (para mim) nostálgico O Abraço Partido (2004), é o filho advogado de um pai advogado que se torna pai também e promete para ele mesmo que dessa vez vai ser diferente. 

O jovem é interpretado pelo ator Daniel Hendler (onipresente nos filmes de Burman). Ele tem um medo impressionante de ser feliz. Questiona a relação com o pai, com o filho, com a bela mulher (inicialmente sua aluna), com ele mesmo, com o mundo. Mas no fundo o que está em foco é sua busca pessoal (“quem sou e quem é você nessa história?”). E aí vemos temas recorrentes do diretor: o judaísmo, a sociedade latina (notadamente argentina), os pequenos gestos capazes de explicar o mundo. Não se trata de um filme “obra-prima” como querem tantos autores jovens do cinema atual. É a pequena pérola de uma jóia familiar que, se não explica muita coisa, nos faz questionar um bocado.

Roteiro Sentimental: o pequeno Gastón (Eloy Burman, filho do diretor) rouba a cena sempre que aparece, dá vontade de ter um filho igual. Outro ponto forte é a fragilidade existencial transmitida por Hendler. Seu olhar de desamparo traduz tudo: omissão, aproximação, distanciamento, quase-amor.

Como nossos pais

setembro 18, 2007

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Em cartaz: Person (Brasil, 2007)

Eu perdi meu pai muito cedo. As imagens que tenho da minha vida com ele são desbotadas. Tem as cores dos anos 70, distantes. Por isso o documentário Person (2007), sobre o cineasta Luís Sérgio dirigido por sua filha Marina, me despertou uma estranha sensação de cumplicidade. Partindo de farto material de arquivo (lindas imagens da família em Super 8, fotos, entrevistas da época, etc.), depoimentos e principalmente das reminiscências pessoais, ela vai nos revelando mais e mais desse brilhante artista que nos deixou cedo, embora com tempo de marcar seu nome na história do cinema brasileiro com obras-primas como São Paulo S.A. (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967). Mas quero voltar à Marina. Antes de ver o documentário, fiquei com medo do tom íntimo e pessoal, do formato “diário” que sempre desponta na narração em primeira pessoa. Nada disso é problema. Ao contrário, quando ela está em cena com a mãe (linda) e a irmã (linda também), o filme se torna quase epifânico. Seus olhos brilham e isso faz com que o público queira compartilhar aquelas memórias também. Desperta a vontade de ter conhecido Luís Sérgio Person e mais: conhecer o que ele teria produzido se tivesse tido mais tempo.

Roteiro Sentimental: a trilha de Jorge Benjor (destaque para Domingas) cola em nossa cabeça assim como a luz no fim do túnel (literal) cola em nossas retinas. Mas o destaque mesmo fica para a coragem de descrever o pai morto, revelando um homem e um artista que o mundo precisa conhecer mais e melhor.

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Em cartaz: The Bubble (Israel, 2006)

O perigo de um filme como The Bubble (Ha-Buah, 2006) é cair na armadilha das simplificações. No caso, o viés panfletário poderia sobressair nos inúmeros personagens gays e simpatizantes (incluindo os protagonistas) retratados na história, além da conotação política, que claramente expõe um ponto de vista liberal em relação aos conflitos entre árabes e israelenses. Mas o que se vê no filme é lirismo sem pieguice (alguns poucos exageros não chegam a comprometer o tom dominante) e consciência humanitária sem juízos de valor ou lições de moral.

Eytan Fox (autor do não menos polêmico Yossi & Jagger, de 2002) parte de um conflito local para falar de algo que acontece tanto nas fronteiras entre Israel e os territórios ocupados quanto nas favelas do Rio de Janeiro. O constrangimento de muitos, a revolta de outros e ainda a perversão de alguns. Na luta pessoal pela assimilação do desejo, o diretor vai seduzindo o público com o clima gay-festivo de Tel Aviv até a dissolução da aludida “bolha”. O fato do título não ter sido traduzido no Brasil deixou (pelo menos em mim)  a impressão de que é necessário reconhecer o estrangeiro que há em nós para que os limites ganhem outros significados.  

Roteiro Sentimental: impossível não se emocionar com a versão de Ivri Lider para The Man I Love, de George e Ira Gershwin, que ouvi tempos atrás na interpretação inesquecível de Ella Fitzgerald. Aliás,  a trilha tem ainda Bebel Gilberto criando climas acertados. Códigos perfeitos para aproximar mundos aparentemente distantes.

Dança da Solidão

setembro 10, 2007

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Em cartaz: Medos Privados em Lugares Públicos (França, 2006)

O declínio sempre me fascinou. Me sinto um tanto retrô no gosto por coisas antigas, gastas, sejam elas do século XIX ou da década de 60,70 do XX. Quando assisti a Medos Privados em Lugares Públicos (Coeurs, 2006) me vi mergulhado numa atmosfera decadente (entendam, no melhor sentido que esse termo tem pra mim). Os seis personagens em busca do amor já têm mais de 30 anos (em alguns casos, bem mais). Os cenários (além da neve constante que lembra antigos cartões de natal) evocam algum tipo de relação com o passado, sem falar no vermelho-pesado-dominante do bar do hotel (existe expressão mais vintage que “bar do hotel”?) despertando o desejo por um drink naquele balcão. Tô falando em personagens e cenários porque o filme originalmente é uma peça de teatro (e a excelência do texto de Alan Ayckbourn deixa isso bem claro), mas trabalhada com tamanha maestria que se transforma em obra imagética por excelência.

Alain Resnais não é um mestre apenas por tudo que já legou à história do cinema. É mestre porque, com mais de 80 anos, ainda consegue se divertir fazendo cinema (a câmera explorando espaços com tanta desenvoltura que empolga). Consegue transformar retratos tristes em singelos fotogramas de nós mesmos, sempre em busca de uma história de amor real. Nem que elas durem o tempo da projeção de um filme. 

Roteiro sentimental: não dá para esquecer os personagens Charlotte (Sabine Azèma -fantástica) e Lionel (Pierre Arditi) sob a neve que invade metaforicamente o apartamento. Sentimos frio e calor ao mesmo tempo, como sempre acontece ao tentarmos resolver pendências com o tempo, com a memória, com a vida imaginada.

Memória possível

setembro 6, 2007

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Em cartaz: Santiago (Brasil, 2007)

A imagem acima, claro, não é do personagem-título do novo documentário de João Moreira Salles, Santiago (2007). É a foto do próprio diretor que, de tanto se esconder, é quem mais acaba aparecendo. Um revelação bem peculiar, já que não se trata a meu ver de nenhuma “exposição gratuita” ou “ato político” como querem alguns. Ele “estuda” as tais inconfidências: do narrador em primeira pessoa que é puro simulacro ao tom despudorado de vilão que imprimiu à própria atuação ao longo do filme. E isso não prejudica em nada a sua maestria. Não vou repetir aqui os clichês já ditos e repetidos sobre o longa: da comparação à Proust e suas madeleines, Alice e seus espelhos, passando por potenciais implicações psicanalíticas e investigações sobre o “fazer documentário” até à desilusão pelo ofício (aventada pelo próprio João). Para mim é puro afeto. É um dos filmes mais corajosos dos últimos tempos, justamente por suscitar e alimentar tantas especulações. A minha se baseia numa única sentença, parafraseando Gilberto Gil: muitas vezes temos que “morrer pra germinar”.

Roteiro Sentimental: impossível não se encantar com os vácuos (explosões), que se expressam por telas escuras ao longo da narrativa, me lembrando rubricas de Clarice, em A Hora da Estrela. Outro detalhe de arrepiar: como um último vestígio do desnudamento, o diretor relata a influência, à época, do cinema de planos distanciados (e belos) praticados por Yasujiro Ozu. Foi nesse momento que me encontrei definitivamente com o mordomo, figura ímpar com todos os significados que a expressão implica.

I love you

setembro 5, 2007

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Em cartaz: Algo como a Felicidade (República Tcheca, 2005)

Começar um blog inteiramente dedicado a uma grande paixão, o cinema, me deu certo receio (quanto ao desejo, à dedicação, ao compromisso), mas não tive a menor dúvida sobre o primeiro filme (sim, pretendo postar aqui ao menos um filme por dia) a ser abordado. Algo como a Felicidade (Stestí, 2005) pode caber em qualquer tipo de definição: de cult reflexivo à paródia dos filmes indie-norte-americanos. Não me importo muito com definições. E dificilmente levo mais em conta a opinião dos outros em detremento da minha. O diretor Bohdan Sláma conseguiu me convencer não apenas pela textura dada às imagens ou pela atenção dedicada aos atores (quase todos estão acima da média). Me conquistou pelo relato de vidas comuns, que se encontram na Europa do Leste, mas poderiam estar igualmente perdidas no Japão ou em Goiás.

Roteiro sentimental: a música que fecha o filme, I’m on the corner of your mind (mais conhecida pelo refrão “I love you”) de Leonid Soylbelman, entrou na minha vida pela porta da frente e é a mais tocada desde então no meu mp3.